Sertão Hoje

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Fabiano Cotrim

É professor e advogado do escritório "Cotrim, Cunha & Freire, Advogados Associados", em Caetité. Membro da Academia Caetiteense de Letras (cadeira Luís Cotrim), Mano, como é conhecido, gosta mesmo é de escrever poesias, mas, desde os tempos de Maurício Lima, então batucando na sua velha Olivetti Lettera 32, colabora com o Jornal Tribuna do Sertão, sempre nos mandando crônicas.

Crônicas da pandemia - Parte IV: O sofá

Não tá fácil para ninguém, eu sei. O bicho tá pegando, eu sei. Mas ainda assim quero reclamar. Afinal, se eu não gostar de mim, quem há de? Bem verdade que a vida de nós, sofás, nunca foi moleza. Nascemos para servir, para tudo ver e nada falar e para carregar peso. Tudo bem. Eu sou um desses sofás conformados com o destino. Tenho amigos e conhecidos que são revoltados, que tentam a todo custo umas rebeldias que desaprovo, e quebram uma perna, soltam uma mola, esgarçam-se de propósito, só para não servir aos humanos. Eu, não. Aqui nessa casa, nesse canto, com a cara virada para a televisão, já estou nem me lembro desde quando. Estático. Pronto para o uso, como acho deveriam estar todos os sofás do mundo. Mas cada qual, cada qual.

Pois bem. A vida seguia seu rumo, semana sim, semana não, eu ganhava uma boa limpeza, era levantado e aspirado o meu canto, cheirinho de desinfetante de lavanda, coisa que gosto muito, meu corpo escovado que chegava a arrepiar os pelos, uma belezura só. E havia os intervalos. Ah, os intervalos, como eu os aproveitava bem. Sofá que é sofá gosta de ficar pensando na vida. Na dele, pouco, que vida de sofá não tem lá essas graças, mas nas dos outros...

Não sei se vocês sabem, mas nós, sofás, sabemos de muita coisa, vemos muita coisa. Por exemplo aqui nesta casa, se eu contasse tudo o que sei, o mundo vinha abaixo. Quarta-feira mesmo é dia da minha dona receber visita. Uma visita muito particular, eu diria. É o seu Tonhão borracheiro, que segundo apurei, tem uma borracharia logo ali na esquina. Pois então, saia seu Amâncio, o dono da casa, para o trabalho, na quarta, e o seu Tonhão chegava. Era chegar e esparralharem mim, todo folgazão. Vinha a patroa, sentava junto e daí...,mas eu já ia falando o que não devo. E não é esse o motivo da minha reclamação, absolutamente, disso eu até gosto, do embalo desses encontros, as sacudidas que levo as tomo como massagem e tudo bem.

Eu dizia dos intervalos para meditar. Mas não era só para meditar. Era descanso. Necessário descanso para suportar dignamente a missão da minha vida. Pois bem, acabou-se o que era doce. Desde o mês de fevereiro, e já vamos para junho, que não tenho um minuto sequer de descanso, um segundo que seja para chamar de meu. Não, depois desse coronavírus é lotação máxima, é lotação acima da capacidade, é pulo, é sujeira de farelos variados, é suco derramado, é uma lástima. E as notícias que tenho de ouvir? Cada uma pior do que a outra e o tempo todo. Já foi pior, no começo foi pior.

Seu Amâncio mesmo teve um dia que ficou o tempo todo sentado, deitado em mim e só ouvindo falar dessa tal pandemia. E era quarta-feira. E a patroa em cócegas, um olho no peixe e o outro no gato, só dizendo que por ela, que é fã do Bolsonaro, esse negócio de ‘home office’ nem existia. É uma gripezinha, Amâncio, vai tu para a repartição ao menos toda quarta-feira e mostra para aquela cambada de parasitas que tu é macho igual ao mito. Seu Amâncio, coitado, manso que só ele, ainda dizia um será, mulher? Mas não ia. Não foi. Deprimente...

Ufa. Desabafei. Mas não cheguei no ponto que eu queria. A questão nem é perder a paz de espírito, as notícias ruins da televisão, não, isso eu aguentaria de boa, como deve fazer qualquer sofá digno, e eu sou um sofá digno. A questão é o peso do povo. Gente, eu não sei quantos quilos cada um daqui de casa ganhou, mas que cada um já pesa bem mais do que antes, isso eu garanto. Aí também já é demais também. E os peidos? Pensa só nesse povo todo comendo pão, ovo, feijão que não acaba mais, tudo preso dentro de casa sem fazer da vida nada e sentado nesse que vos fala o dia todo e a noite também, e madrugada a dentro? Dá mais não. Desloquei de propósito uma das minhas pernas, desajustei o meu espaldar, fiquei cada dia menos confortável. Me rebelei? Não. Só entrei em quarentena...