Sertão Hoje

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Fabiano Cotrim

É professor e advogado do escritório "Cotrim, Cunha & Freire, Advogados Associados", em Caetité. Membro da Academia Caetiteense de Letras (cadeira Luís Cotrim), Mano, como é conhecido, gosta mesmo é de escrever poesias, mas, desde os tempos de Maurício Lima, então batucando na sua velha Olivetti Lettera 32, colabora com o Jornal Tribuna do Sertão, sempre nos mandando crônicas.

O ponto da carne...

Tudo começou com a pergunta que lhe fez a mocinha daquela hamburgueria modernosa que os amigos insistiram em levá-lo. Não queria ir. Não queria ir a lugar nenhum já faz tempo. Mas ia, de vez em quando ia...

- Qual é o ponto da sua carne, senhor?

Foi o bastante. Do nada começou a pensar que o ponto da sua carne era o ponto em que não há mais chance de viver pelo tempo que já havia vivido. Não no seu estilo de vida. Não comendo hambúrguer a uma hora daquelas e isto depois de litros de chopp. Passado dos cinquentas, viver um século ou mesmo próximo disso, dado o estado da sua carne, pensava, era realmente impossível.

Quanto tempo mais teria de vida? O tempo que já viveu a garota que agora lhe perguntava sobre o ponto da carne? Metade disso? Mais? Menos? Olhava em volta, tantos jovens, e a cabeça não parava de fazer conta. Não, ninguém ali era parâmetro para tais medidas.

Olhou então para a sua mesa, os amigos e amigas que ali estavam. Pior. O mais novo era pouco mais jovem do que ele. Mais jovem sendo modo de dizer, entenda-se. Ninguém ali era jovem, ninguém ali dobraria de idade, achava.  Tinha o Pereira, todo dado a malhações e tais. Academia, natação, bicicleta. Aliás, agora a moda entre a gente da sua idade era a bicicleta. Bicicleta e fisioterapia, entenda-se.

E se não tivesse mais nenhum tempo considerável de vida? Era possível, era possível. E as tantas coisas que ainda pensava fazer, viver? E as decisões até aqui adiadas? Foi lhe dando um desespero, uma angústia, como se um filme ruim passasse na sua cabeça, toda a sua vida naquele instante rememorada.

Mudaria muita coisa, faria outras tantas que não fez quando deveria - agora achava assim - ter feito. O tempo, o tempo, era só nisto que pensava. E no ponto da sua carne. Definir o ponto em que estava a sua carne, o seu corpo, pois, a sua estrutura, a sua vida, enfim...

Duvidava. Só duvidava. Todas as decisões tomadas até ali, agora lhe pareciam invariavelmente equivocadas. Estava em bom ponto a sua carne? Duvidava. Era boa a sua saúde? Duvidava e muito disso. Quanto tempo mais de vida teria pela frente? Devaneava em agonia quando a garçonete repetiu:

- Senhor, qual o ponto...

- Mal passada, minha filha, mal passada...

Foi só quando o seu pedido chegou, depois da primeira mordida na carne que sangrava, o que lhe era repugnante, é que disse para os amigos uma frase ouvida durante a sua infância: de tanto pensar morreu um burro.

Ninguém entendeu nada, mas todos continuaram a farra e viveram felizes para sempre até quando lhes foi dado viver.

FIM.