Sertão Hoje

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Academia Caetiteense de Letras

Esta Coluna é produzida pelos integrantes da Academia Caetiteense de Letras (ACL) e os seus convidados e tem por objetivo compartilhar com o público discussões relevantes sobre temas da atualidade, sob a ótica acadêmica e literária.

A casa da Santa Bárbara

Finalmente me vi diante do velho casarão secular. Até então, eu só conhecia sua ostentosa fachada através de fotografias e de uma magnífica tela do notável artista plástico, o conterrâneo Gilvande Xavier. Os detalhes do seu interior que povoavam minha imaginação, provinham das empolgantes e nostálgicas narrativas de meu pai. Ele, na infância, de 1949 até o ano de 1951, residiu nas cercanias da Fazenda Santa Bárbara e vivenciou, justamente numa das salas daquela morada histórica, as primeiras experiências escolares. Fora sua professora dona Lucinha Souza, filha de Felinto Souza, um dos proprietários da nobre fazenda. Meu pai teve, portanto, o privilégio de conhecer a casa ainda habitada, recoberta de zelo e das relíquias de um passado pomposo.

O fato de o casarão adequar-se a uma grande produção cinematográfica dirigida pelo premiado Walter Salles e estrelada por ninguém menos que Rodrigo Santoro, acendeu-me o interesse em ver de perto aquele pitoresco pedaço da história de minha cidade e da vida do meu pai. Estava ciente de que a casa clamava cuidados; no entanto, não imaginava que o caos havia se instalado com tal intensidade que tudo parecia vir abaixo a qualquer momento, ao menor sinal de um temporal.

Contudo, a visão da fachada, ao vivo e a cores (ainda que desbotadas), foi um momento de grande expectativa e emoção. Apesar dos desgastes, constatei que a arquitetura é de fato muito singular e marcante. A escadaria frontal e a varanda conferem-lhe uma imponência, uma beleza especial.

Rompendo os degraus, ali mesmo, na entrada, adentrei, em companhia de familiares, a dependência onde outrora havia uma capela, daquelas de antigamente, que provavelmente tinha aquelas lindas e valiosas artes sacras; essas coisas que saem de nossos limites, por mãos ambiciosas e astutas, por preços irrisórios, e vão render bons montantes em mãos de colecionadores por esse mundão afora.

Um velho alojamento ao lado da casa também nos chamou a atenção. Alguém se lembrou de ter ouvido relatos de quem já dormiu ali, antigos empregados da fazenda. Aqueles relatos de assombrações ou visagens, barulhos de correntes arrastadas madrugada afora, gemidos e lamúrios, ruídos de portas e janelas que até se abriam sozinhas, enfim! Essas histórias que casas muito antigas sempre têm. Ao adentrar a sala, logo percebi a ostentosa escada de madeira que conduzia ao mirante. Apesar das agruras do tempo, a madeira ainda se mantinha firme. Madeira de lei! Riqueza entalhada a mão. Crianças são curiosas e destemidas, logo, as que nos acompanhavam subiram os degraus, ansiosas de alcançarem o topo da casa. Defrontaram-se, porém, com uma revoada de morcegos. Minha vontade de alcançar o mirante era tamanha que acabei vencendo o medo dos bichos sombrios. Por ser apaixonada por história e ter uma imaginação que ultrapassa os limites da normalidade, foi aí que encontrei meu portal para o passado. Enquanto subia, me sentia como uma dama do século XIX e me via de cabeça erguida, cabelo bem penteado sob um chapéu inglês, com delicadas luvas cobrindo as mãos, segurando a barra de um longo vestido, ricamente bordado, para não tropeçar nos degraus. Ao alcançar o mirante, eu já havia me transformado em baronesa. O sonho, porém, não demorou muito tempo. Ao me deparar com paredes arranhadas, crivadas de nomes de visitantes, datas e outras toscas inscrições, saí do Brasil Império e caí direto na idade da pedra.

Percorremos outras partes da casa. Observei os detalhes do assoalho antigo, as portas, as janelas e o teto. Então, me pus a imaginar o passo a passo de sua construção. Mãos escravas, provavelmente, carregaram e moldaram o barro. Pensei que as mesmas mãos sofridas talvez tenham lavrado troncos pesados, toras fornidas, a machado, plaina e enxó, dando o formato das linhas, caibros e ripas. Encantou-me a rusticidade presente nas dobradiças, escoras, fechaduras, e principalmente no formato ovalado, na parte superior dos marcos das portas e das janelas.

A cozinha foi um detalhe a parte. Jamais vi, em lugar algum, um fogão à lenha com aquele traçado e aquela dimensão. A imaginação novamente abriu o portal e pude ver tachos de barro e de cobre, pilão, peneira, chaleira, chocolateira “chiculateira”, café de rapadura fumegando no coador de pano, a criadagem, os comandos, os desmandos; essas coisas que as cozinhas de antigamente sempre tinham.

Assim que me aproximei dos fundos, detectei, com o coração dilacerado, uma enorme fenda na parede lateral; abertura suficiente para dar passagem a um animal de médio porte. No chão, poeira e blocos de adobão. Fixei os olhos nas pedras do alicerce que estavam à mostra e nas amarrações, enchimentos aparentemente frágeis, mas que suportaram com bravura a passagem desses longos anos. Em seguida, contemplei o barro que se dissolvia e os blocos de adobe que ainda se mantinham quase inteiros. Detectei junto à massa algumas pedrinhas, caquinhos e vestígios de fibras vegetais, gramíneas que decerto cresciam em leito de rio ou margeando alguma lagoa. Naqueles tempos, assim contam os mais velhos, o barro bruto era misturado à palha, esterco e pedrinhas e umedecido com leite de vaca que era para dar a liga e garantir resistência.

Felizmente... ou infelizmente, em nossa “Princesinha do Sertão”, as chuvas não caem regularmente. Se chovesse constantemente, talvez não houvesse mais um adobe inteiro para contar a história da casa da Santa Bárbara. Graças a Deus, meus olhos puderam vê-la de pé, ainda que em péssimo estado de conservação. Guardarei essas doces e rústicas lembranças em meu coração e principalmente em minhas histórias.

N.R.- Desta feita, a coluna “O Silogeu” traz um texto de autoria da acadêmica e Professora Márcia Haidê Gomes da Silva Fernandes Monteiro, ocupante da “cadeira18 – Elza Silveira”.Saiba mais sobre a ACL acessando https://pt.wikipedia.org/wiki/Academia_Caetiteense_de_Letras.