Sertão Hoje

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Colunistas

Ricardo Stumpf

Ricardo Stumpf é graduado em Arquitetura, com especialização em Desenho Urbano, Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia e especialização em Lingüística: leitura e produção de textos pela Universidade do Estado da Bahia (2007).

A cidade e as serras

Publicado em 1901, este romance do autor português Eça de Queiroz faz um contraponto entre a vida na agitada Paris do final do século XIX e a calma do interior do norte de Portugal, na mesma época.

Num momento em que Paris era o "centro do mundo", uma espécie de Nova Iorque da época, onde as grandes invenções do "século das luzes" aconteciam e se materializavam, alterando o dia a dia da vida urbana, Portugal se mantinha ainda na obscuridade de uma vida pacata, rural e pachorrenta, sob a decadente monarquia que só seria abolida pela revolução republicana de 1910.

Os personagens principais da trama, Jacinto e Zé Fernandes são grandes amigos. Jacinto nasceu em Paris de uma família de fidalgos, que se exilara quando da restauração do nosso Pedro I no trono Português, onde foi coroado Pedro IV após derrubar seu irmão Miguel, que lhe usurpara o lugar.

Herdando uma considerável fortuna, Jacinto, por ser descendente dos senhores de Tormes, uma pequena localidade nas serras portuguesas, vivia num palacete nos Champs Elysees, em meio ao luxo e à ociosidade.

Zé Fernandes, seu amigo nascido em Guiães, localidade próxima à Tormes, vai a Paris estudar direito na Sorbonne, mas não consegue concluir o curso, tendo de voltar a Portugal para ajudar seus parentes, donos de uma pequena propriedade rural, da qual tiravam seu sustento.

Sete anos depois, resolvidos seus problemas econômicos, Zé Fernandes retorna à Paris e passa a conviver com Jacinto no seu palacete de numero 202, na famosa avenida parisiense. É lá que ele passa a observar o comportamento de seu amigo, a quem chama de "Príncipe da Grã-Ventura", por sua situação privilegiada.

De início, contaminado pelo entusiasmo de Jacinto pela civilização, Zé Fernandes vai admirando a erudição e a intensa vida social do amigo.

Dentre as coisas que mais admirava no famoso 202, estavam a biblioteca de 30.000 volumes e as invenções elétricas, como o fonógrafo, o telefone, dentre outras, e a tremenda sofisticação da cozinha, com seus elevadores separados para enviar carnes e peixes à fantástica sala de jantar, onde Jacinto recebia seus convivas.

Logo, porém, passa a perceber que nada daquilo consegue mais preencher a vida do seu privilegiado amigo, que se afunda no tédio e passa a cultivar desejos mórbidos, num estado de espírito que é assim definido por Grilo, seu criado preto: o patrão sofre de fartura!

Uma inundação que derruba a capela onde estavam enterrados seus ancestrais em Portugal, faz Jacinto decidir ir a Tormes para proceder o translado dos ossos à nova capela que mandara construir.

A viagem, longamente preparada, é um absurdo de exigências de conforto, revelando a discrepância entre a península ibérica, considerada na época quase um território selvagem, e a exuberância de Paris.

Ao chegar na propriedade de seus avós, após pisar pela primeira vez na vida o solo português, para surpresa de Zé Fernandes Jacinto renasce e acaba ficando por lá, onde constitui família e estende os benefícios da civilização aos foreiros que viviam em sua terras, tornando-se uma espécie de benfeitor.

No capítulo final, Zé Fernandes retorna a Paris, apenas para se desencantar com as ilusões de uma civilização que não oferecia nada de "realmente importante", finalmente dando valor à terra em que nascera.

Mais do que uma comparação entre a França desenvolvida e um Portugal atrasado, a obra é uma crítica à civilização do supérfluo, que já ia se estabelecendo, num mundo burguês que começava a atingir seu auge.

Dentre as melhores partes do livro, separei esta para os leitores:

"O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado − e contra ele são impotentes os prantos dos Humanitários, os raciocínios dos Lógicos, as bombas dos anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a Esperança da terra novamente posta num Messias!... Um decerto desceu outrora dos grandes céus; e, para mostrar bem que mandado trazia, penetrou mansamente no mundo pela porta de um curral. Mas a sua passagem entre os homens foi tão curta! Um meigo sermão numa montanha, ao fim de uma tarde meiga; uma repreensão moderada aos Fariseus que então redigiam o "Boulevard"; algumas vergastadas nos Efrains vendilhões; e logo, através da porta da Morte, a fuga radiosa para o Paraíso! Esse adorável filho de Deus teve demasiada pressa em recolher a casa de seu Pai! E os homens a quem ele incumbira a continuação da sua obra, envolvidos logo pelas influências dos Efrains, dos Trèves, da gente do Boulevard, bem depressa esqueceram a lição da Montanha e do lago Tiberíade − e eis que por seu turno revestem a púrpura, e são Bispos, e são Papas, e se aliam à opressão, e reinam com ela, e edificam a duração do seu reino sobre a miséria dos sem pão e dos sem lar! Assim ter de ser recomeçada a obra da Redenção, Jesus, ou Gautama, ou Krishna, ou outro desses filhos que Deus por vezes escolhe no seio de uma virgem, nos quietos vergéis da Ásia, deverá novamente descer à terra da servidão"

A referência ao Boulevard, aos Efrains e aos Trèves, é uma crítica à sociedade parisiense da época, em que os ricos desfilam nos boulevares, indiferentes à sorte dos miseráveis que "morriam de frio sob as pontes de Paris".

É interessante observar como a crítica de Eça de Queiroz ao capitalismo já anunciava, no fim do século XIX, as mesmas mazelas das quais nos queixamos hoje no Brasil.

Finalmente, ao abandonar Paris definitivamente Zé Fernandes diz:

"− Pois adeuzinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas. E o que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio!"

Nós, que padecemos hoje no Brasil uma contrarevolução desta mesma burguesia endurecida, estúpida e vaidosa, que se orgulha de não se importar com os pobres, enquanto corteja os poderosos das nações que nos desprezam, devíamos refletir sobre se já não é hora de jogar essa gente ao mar, ou mandá-los para um luxuoso exílio em Miami, onde possam morrer de tédio em meio à fartura, indiferentes à sorte da humanidade, como parece ser o seu desejo.